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Perdoe o Leitor o tom
intimista deste post, mas hoje dirigimo-nos a si, estudante ou docente de
Nutrição, que tem a bondade de consultar os posts do NCO, uma vez por outra,
para falarmos sobre a importância da leitura literária na formação dos futuros
nutricionistas.
Qual foi a última obra
literária que leu? Há quanto tempo?
A estratégia para a promoção dos
hábitos de leitura e a qualificação literária das populações está na agenda
política há várias décadas, veja-se a título de exemplo o PNL 2027 em Portugal. Não
obstante esta vontade, o analfabetismo literário tem aumentado nas
camadas jovens; recentemente, um estudo nacional sobre as práticas culturais
dos portugueses, pela Gulbenkian,
revelou que 61% dos portugueses inquiridos não leu qualquer livro impresso, no
último ano, e que a leitura de livros digitais foi realizada apenas por 10% dos
inquiridos.
Prezado Leitor, para além da
importância da leitura na formação de qualquer cidadão, temos que falar sobre a
literatura como “alimento”, sobre a alimentação na literatura e
sobre o texto “culinário” como texto literário.
Para além da importância da
literatura como “alimento” para o pensamento, “food for thought”, a
alimentação e os alimentos pululam no imaginário literário desde sempre. Desde
a referência ao fruto proibido no texto bíblico, a alimentação como festim em "Gargântua e Pantagruel", de Rabelais, a eterna fome de Sancho Pança em "D.Quixote", de Miguel Cervantes, os manjares da “Ilha dos Amores”, nos Lusíadas,
a antropofagia nos contos de Clarice Lispector ("Laços de Família"), ou o chá da
Alice, no "País das Maravilhas" de Lewis Carroll, até ao famoso arroz de favas,
na obra “A cidade e as serras” (de Eça de Queiroz), ou o alforge de galinha,
vinho e pão, preparado por Tomásia, em "Coração, Cabeça e Estômago", de Camilo
Castelo Branco, ou os chocolates da “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, ou as
torradas de Raimundo Silva, em a "História de Cerco de Lisboa", de José Saramago -
os exemplos são infinitos - a comida é um ingrediente chave na mimese e na
metáfora literária.
A referência à alimentação ou aos
alimentos na literatura raramente representa uma mera descrição de um prato ou
de uma refeição; a semiótica da alimentação e dos alimentos sempre foi
alvo de interesse para o estudo da história, da cultura e da sociedade. Da
mesma forma, cada vez mais os textos de culinária e outros dedicados à
preparação de pratos e refeições são objeto de análise pela crítica
literária.
Por último, não podemos deixar de
citar algumas obras literárias de autores da FCNAUP (ou que colaboraram
com a FCNAUP) como por exemplo os livros de contos do Dr. Lima Reis,
disponíveis na biblioteca, ou da Prof.
Isabela Ottoni.
Prezado Leitor, regressamos ao
tom de confidência e partilhamos que, em finais de setembro, iniciamos uma
experiência literária de forma ingénua e simples: emprestamos alguns livros
particulares a elementos da comunidade académica da FCNAUP.
Um dos títulos emprestados foi
“O que procuras está na Biblioteca”, de Michiko Aoyoma, sendo que
desafiamos o leitor a responder às questões abaixo, após a leitura desta obra:
- O
poder da literatura não se esgota na ilusão ou deleite da leitura; na sua
opinião, pode um livro (entenda-se obra literária) mudar uma vida?
- A
alimentação na literatura e a literatura como “alimento”; consideraria a
promoção da leitura literária uma componente base na formação de futuros
nutricionistas?
- “O
que procuras está na Biblioteca” (da FCNAUP ?). Que obras literárias
gostaria de ler na biblioteca da FCNAUP?
Poderá consultar as respostas
abaixo. Desde já o nosso agradecimento especial à Prof.ª Bárbara Pereira
por ter acedido ao convite à leitura, pela disponibilidade em responder às
questões colocadas e pelas sugestões de títulos para criar uma “antologia
edível” de obras literárias a disponibilizar aos utilizadores da biblioteca da
FCNAUP.
Prezado Leitor, neste Natal,
empreste livros, compre livros, ofereça livros, visite a(s) biblioteca(s), mas leia!
Entrevista ao Leitor da obra “O
que procuras está na Biblioteca”, Prof.ª Bárbara Pereira, novembro 2022:
- O
poder da literatura não se esgota na ilusão ou deleite da leitura; na sua
opinião, pode um livro (entenda-se obra literária) mudar uma vida?
Sim, acredito que sim. É
certo que há obras e obras, mas as obras literárias permitem-nos mergulhos em
profundidade, permitem-nos ver (verdadeiramente ver sem ter de usar os olhos)
outros sítios, viver outras alegrias e outros problemas, permitem-nos
subterfúgios. Levam-nos a ver a nossa própria vida fora daquela que é a nossa
“bolha”.
A experiência imersiva,
noutra realidade, noutro contexto, noutra história, parece-me sempre um bom
ponto de partida para questionar a nossa própria realidade. E a partir do
momento em que isso se proporciona, a obra é muito mais do que um objeto de
cabeceira ou do que uma companhia de um café preguiçoso; é um agente promotor
da mudança, que se espera para melhor.
E melhor do que eu a
dizê-lo e escrevê-lo, é trazer a este espaço uma boa autora para o descrever da
forma que eu não consigo, registando que este trecho se cruzou comigo inusitadamente
para o poder deixar aqui:
“O livro superou a prova
do tempo, demonstrou ser um corredor de longas distâncias. Sempre que acordámos
do sonho das nossas revoluções ou do pesadelo das nossas catástrofes humanas, o
livro continuava ali. Como diz Umberto Eco, pertence à mesma categoria do que a
colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Depois de inventados, não se pode fazer
nada melhor.” Irene Vallejo, in o Infinito num Junco.
2. A
alimentação na literatura e a literatura como “alimento”; consideraria a promoção
da leitura literária uma componente base na formação de futuros
nutricionistas?
Tenho uma profunda
convicção que sim, e não só para futuros nutricionistas.
Ninguém se deve eximir à
leitura, a leitura é sempre um caminho.
Hoje permito-me a registar
uma proposta que espero um dia possa ser bem acolhida pela nossa Casa da
Nutrição: um projeto de leitura em torno da discussão de obras literárias
nacionais e internacionais com alusão e referência à alimentação e à
gastronomia. E há felizmente tantos e tão bons exemplos, que poderia ser um
projeto para perdurar:
- Do famoso arroz de favas
na quinta de Tornes, em pleno Douro, com o Jacinto, na obra “A cidade e as
serras” ou em “O crime do padre Amaro”, na dicotomia entre a fartura de uns e a
escassez de outros, enquanto “os padres se banqueteiam, comendo todos
‘como abades’”, “a empregada Gertrudes, quase às escondidas, mete uma broa no
alforge de um miserável pedinte”, ambas obras do nosso aclamado Eça de Queiroz.
- Ou na Montanha Mágica de
Thomas Mann, em que se descreve o banquete farto do jovem Hans Castorp enquanto
a própria personagem se redescobre.
- Ou ainda no “Pasta senza
vino” do brasileiro Eduardo Krause, com trechos maravilhosos como este: “A
feijoada nada mais é do que uma violência contra si mesmo. O sistema digestivo
sofre para processar a despudorada mistura de ingredientes sem sentido. E que
maravilhosa aberração culinária!”
Incontáveis referências
literárias com alusão aos nossos comeres, aos costumes e tradições, à escassez
e à abundância, à alimentação como ato social que perdura nos tempos e nas
escritas.
Muitas sugestões para Boas
Leituras!
- “O
que procuras está na Biblioteca” (da FCNAUP ?). Que obras literárias
gostaria de ler na biblioteca da FCNAUP?
Devo confessar que quando
me foram colocadas as três questões, comecei por responder a esta porque
considerei que era de resposta simples. A meio voltei à primeira frase e
debati-me com o “delete”, mas deixei-a ficar porque esta pergunta me permitiu
perceber que nunca tinha refletido verdadeiramente sobre o assunto e se tornou
um exercício mais difícil do que havia imaginado.
E então é assim: muito do
que eu procuro está, de facto, na biblioteca; na biblioteca da FCNAUP, claro
está! Mas também noutras que “habito”, especialmente com os meus filhos, pelo
deleite que é partilhar momentos de leitura, de fruição e de escolha de livros
com eles. Nas nossas viagens costumamos visitar as bibliotecas locais e é
sempre um momento especial. De todas guardamos memórias sensoriais, do cheiro
do livro, dos silêncios e dos sussurros, dos lápis de carvão em rabiscos, dos
teclados frenéticos, do folhear do jornal, das cores vibrantes, da luz quente
nas grandes vidraças…
Sobre a nossa biblioteca,
e num intencional paralelismo com o livro que tive o privilégio de ler
recentemente, “O que procuras está na Biblioteca” de Michiko Aoyoma, o que eu
procuro muitas das vezes na nossa biblioteca, mesmo sem saber, são respostas.
Respostas a questões diversas, técnicas, científicas, de vida. Não tenho por
hábito “habitar” muitas vezes a Biblioteca física da FCNAUP (quando a habito
sou recebida sempre com muito calor humano, apoio e serenidade – é muito bom
quando um espaço nos dá esse conforto e segurança e ainda nos proporciona
regalos de vista, num espaço que considero muito bonito e bem conseguido), mas
habito-a muito mais em formato virtual. E adoro um projeto também ele virtual
da biblioteca, de pés bem assentes nas nuvens, que é o Nutrition Chill Out.
Para falar da nossa
biblioteca, não posso deixar de falar das suas gentes especiais: a Dr.ª Marta e
a D.ª Alcina. Encontro na nossa biblioteca pessoas como aquelas que o livro
descreve (embora muito diferentes pela imagem mental que construí delas), falo
de “Sayuri Komachi” e de “Nozomi Morinaga”. O meu bem haja a ambas. Agradeço
à Dr.ª Marta, minha “bibliotecária” de eleição, por me ajudar a encontrar
respostas.
É difícil escolher algumas
obras literárias e correr o risco de deixar outras de fora, de tanto valor. Mas
agora é isto que me ocorre para ler ou reler:
- Livro do desassossego de
Fernando Pessoa
- Valsa do Adeus de Milan
Kundera
- Serei sempre o teu
abrigo de Valter Hugo Mãe
- Coração rebelde de
Arundhati Roy
- Homo Deus: breve
história do amanhã de Yuval Noah Harari
- Ensaio sobre a lucidez
de José Saramago
- Antes que o Café
Arrefeça de Toshikazu Kawaguchi
- e, quem sabe… A
Biblioteca da Meia noite de Matt Haig