A biblioteca da FCNAUP dispõe de um novo recurso online "Nutrition Chill Out". O principal objetivo do "Nutrition Chill Out" é promover a leitura (descontraída) das obras existentes na nossa biblioteca a partir da seleção de alguns excertos pertinentes para um dado tema da atualidade ou para assinalar datas de interesse.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Pode um livro mudar a sua vida? A importância da leitura literária na formação dos nutricionistas| Dez 2022

 

Fonte da imagem: Pixabay

Perdoe o Leitor o tom intimista deste post, mas hoje dirigimo-nos a si, estudante ou docente de Nutrição, que tem a bondade de consultar os posts do NCO, uma vez por outra, para falarmos sobre a importância da leitura literária na formação dos futuros nutricionistas.

 Qual foi a última obra literária que leu? Há quanto tempo?

A estratégia para a promoção dos hábitos de leitura e a qualificação literária das populações está na agenda política há várias décadas, veja-se a título de exemplo o PNL 2027 em Portugal. Não obstante esta vontade, o analfabetismo literário tem aumentado nas camadas jovens; recentemente, um estudo nacional sobre as práticas culturais dos portugueses, pela Gulbenkian, revelou que 61% dos portugueses inquiridos não leu qualquer livro impresso, no último ano, e que a leitura de livros digitais foi realizada apenas por 10% dos inquiridos.

Prezado Leitor, para além da importância da leitura na formação de qualquer cidadão, temos que falar sobre a literatura como “alimento”, sobre a alimentação na literatura e sobre o texto “culinário” como texto literário.

Para além da importância da literatura como “alimento” para o pensamento, “food for thought”, a alimentação e os alimentos pululam no imaginário literário desde sempre. Desde a referência ao fruto proibido no texto bíblico, a alimentação como festim em "Gargântua e Pantagruel", de Rabelais, a eterna fome de Sancho Pança em "D.Quixote", de Miguel Cervantes, os manjares da “Ilha dos Amores”, nos Lusíadas, a antropofagia nos contos de Clarice Lispector ("Laços de Família"), ou o chá da Alice, no "País das Maravilhas" de Lewis Carroll, até ao famoso arroz de favas, na obra “A cidade e as serras” (de Eça de Queiroz), ou o alforge de galinha, vinho e pão, preparado por Tomásia, em "Coração, Cabeça e Estômago", de Camilo Castelo Branco, ou os chocolates da “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, ou as torradas de Raimundo Silva, em a "História de Cerco de Lisboa", de José Saramago - os exemplos são infinitos - a comida é um ingrediente chave na mimese e na metáfora literária.

A referência à alimentação ou aos alimentos na literatura raramente representa uma mera descrição de um prato ou de uma refeição; a semiótica da alimentação e dos alimentos sempre foi alvo de interesse para o estudo da história, da cultura e da sociedade. Da mesma forma, cada vez mais os textos de culinária e outros dedicados à preparação de pratos e refeições são objeto de análise pela crítica literária.

Por último, não podemos deixar de citar algumas obras literárias de autores da FCNAUP (ou que colaboraram com a FCNAUP) como por exemplo os livros de contos do Dr. Lima Reis, disponíveis na biblioteca, ou da Prof. Isabela Ottoni.

Prezado Leitor, regressamos ao tom de confidência e partilhamos que, em finais de setembro, iniciamos uma experiência literária de forma ingénua e simples: emprestamos alguns livros particulares a elementos da comunidade académica da FCNAUP.

Um dos títulos emprestados foi “O que procuras está na Biblioteca”, de Michiko Aoyoma, sendo que desafiamos o leitor a responder às questões abaixo, após a leitura desta obra:

  1. O poder da literatura não se esgota na ilusão ou deleite da leitura; na sua opinião, pode um livro (entenda-se obra literária) mudar uma vida?
  2. A alimentação na literatura e a literatura como “alimento”; consideraria a promoção da leitura literária uma componente base na formação de futuros nutricionistas?
  3. “O que procuras está na Biblioteca” (da FCNAUP ?). Que obras literárias gostaria de ler na biblioteca da FCNAUP?

 

Poderá consultar as respostas abaixo. Desde já o nosso agradecimento especial à Prof.ª Bárbara Pereira por ter acedido ao convite à leitura, pela disponibilidade em responder às questões colocadas e pelas sugestões de títulos para criar uma “antologia edível” de obras literárias a disponibilizar aos utilizadores da biblioteca da FCNAUP.

Prezado Leitor, neste Natal, empreste livros, compre livros, ofereça livros, visite a(s) biblioteca(s), mas leia!


Entrevista ao Leitor da obra “O que procuras está na Biblioteca”, Prof.ª Bárbara Pereira, novembro 2022:

  1. O poder da literatura não se esgota na ilusão ou deleite da leitura; na sua opinião, pode um livro (entenda-se obra literária) mudar uma vida?

Sim, acredito que sim. É certo que há obras e obras, mas as obras literárias permitem-nos mergulhos em profundidade, permitem-nos ver (verdadeiramente ver sem ter de usar os olhos) outros sítios, viver outras alegrias e outros problemas, permitem-nos subterfúgios. Levam-nos a ver a nossa própria vida fora daquela que é a nossa “bolha”.

A experiência imersiva, noutra realidade, noutro contexto, noutra história, parece-me sempre um bom ponto de partida para questionar a nossa própria realidade. E a partir do momento em que isso se proporciona, a obra é muito mais do que um objeto de cabeceira ou do que uma companhia de um café preguiçoso; é um agente promotor da mudança, que se espera para melhor.

E melhor do que eu a dizê-lo e escrevê-lo, é trazer a este espaço uma boa autora para o descrever da forma que eu não consigo, registando que este trecho se cruzou comigo inusitadamente para o poder deixar aqui:

“O livro superou a prova do tempo, demonstrou ser um corredor de longas distâncias. Sempre que acordámos do sonho das nossas revoluções ou do pesadelo das nossas catástrofes humanas, o livro continuava ali. Como diz Umberto Eco, pertence à mesma categoria do que a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Depois de inventados, não se pode fazer nada melhor.” Irene Vallejo, in o Infinito num Junco.

 2. A alimentação na literatura e a literatura como “alimento”; consideraria a promoção da leitura literária uma componente base na formação de futuros nutricionistas?

Tenho uma profunda convicção que sim, e não só para futuros nutricionistas.

Ninguém se deve eximir à leitura, a leitura é sempre um caminho.

Hoje permito-me a registar uma proposta que espero um dia possa ser bem acolhida pela nossa Casa da Nutrição: um projeto de leitura em torno da discussão de obras literárias nacionais e internacionais com alusão e referência à alimentação e à gastronomia. E há felizmente tantos e tão bons exemplos, que poderia ser um projeto para perdurar:

- Do famoso arroz de favas na quinta de Tornes, em pleno Douro, com o Jacinto, na obra “A cidade e as serras” ou em “O crime do padre Amaro”, na dicotomia entre a fartura de uns e a escassez de outros,  enquanto “os padres se banqueteiam, comendo todos ‘como abades’”, “a empregada Gertrudes, quase às escondidas, mete uma broa no alforge de um miserável pedinte”, ambas obras do nosso aclamado Eça de Queiroz.

- Ou na Montanha Mágica de Thomas Mann, em que se descreve o banquete farto do jovem Hans Castorp enquanto a própria personagem se redescobre.

- Ou ainda no “Pasta senza vino” do brasileiro Eduardo Krause, com trechos maravilhosos como este: “A feijoada nada mais é do que uma violência contra si mesmo. O sistema digestivo sofre para processar a despudorada mistura de ingredientes sem sentido. E que maravilhosa aberração culinária!”

Incontáveis referências literárias com alusão aos nossos comeres, aos costumes e tradições, à escassez e à abundância, à alimentação como ato social que perdura nos tempos e nas escritas.

Muitas sugestões para Boas Leituras!

  1. “O que procuras está na Biblioteca” (da FCNAUP ?). Que obras literárias gostaria de ler na biblioteca da FCNAUP?

Devo confessar que quando me foram colocadas as três questões, comecei por responder a esta porque considerei que era de resposta simples. A meio voltei à primeira frase e debati-me com o “delete”, mas deixei-a ficar porque esta pergunta me permitiu perceber que nunca tinha refletido verdadeiramente sobre o assunto e se tornou um exercício mais difícil do que havia imaginado.

E então é assim: muito do que eu procuro está, de facto, na biblioteca; na biblioteca da FCNAUP, claro está! Mas também noutras que “habito”, especialmente com os meus filhos, pelo deleite que é partilhar momentos de leitura, de fruição e de escolha de livros com eles. Nas nossas viagens costumamos visitar as bibliotecas locais e é sempre um momento especial. De todas guardamos memórias sensoriais, do cheiro do livro, dos silêncios e dos sussurros, dos lápis de carvão em rabiscos, dos teclados frenéticos, do folhear do jornal, das cores vibrantes, da luz quente nas grandes vidraças…   

Sobre a nossa biblioteca, e num intencional paralelismo com o livro que tive o privilégio de ler recentemente, “O que procuras está na Biblioteca” de Michiko Aoyoma, o que eu procuro muitas das vezes na nossa biblioteca, mesmo sem saber, são respostas. Respostas a questões diversas, técnicas, científicas, de vida. Não tenho por hábito “habitar” muitas vezes a Biblioteca física da FCNAUP (quando a habito sou recebida sempre com muito calor humano, apoio e serenidade – é muito bom quando um espaço nos dá esse conforto e segurança e ainda nos proporciona regalos de vista, num espaço que considero muito bonito e bem conseguido), mas habito-a muito mais em formato virtual. E adoro um projeto também ele virtual da biblioteca, de pés bem assentes nas nuvens, que é o Nutrition Chill Out.

Para falar da nossa biblioteca, não posso deixar de falar das suas gentes especiais: a Dr.ª Marta e a D.ª Alcina. Encontro na nossa biblioteca pessoas como aquelas que o livro descreve (embora muito diferentes pela imagem mental que construí delas), falo de “Sayuri Komachi” e de “Nozomi Morinaga”. O meu bem haja a ambas. Agradeço à Dr.ª Marta, minha “bibliotecária” de eleição, por me ajudar a encontrar respostas.

É difícil escolher algumas obras literárias e correr o risco de deixar outras de fora, de tanto valor. Mas agora é isto que me ocorre para ler ou reler:

- Livro do desassossego de Fernando Pessoa

- Valsa do Adeus de Milan Kundera

- Serei sempre o teu abrigo de Valter Hugo Mãe

- Coração rebelde de Arundhati Roy

- Homo Deus: breve história do amanhã de Yuval Noah Harari

- Ensaio sobre a lucidez de José Saramago

- Antes que o Café Arrefeça de Toshikazu Kawaguchi

- e, quem sabe… A Biblioteca da Meia noite de Matt Haig


terça-feira, 22 de março de 2022

Sustentabilidade: rio semântico ou murmúrio coletivo? | Dia Mundial da Saúde 07.04.2022

 

                                                                      Fonte da imagem: WHO

A Biblioteca da FCNAUP junta-se à comemoração mundial do Dia Mundial da Saúde assinalada anualmente no 07 de abril. A Organização Mundial da Saúde divulgou o tema da campanha anual para 2022: “Our planet, our health: clean our air, water and food.”.

As preocupações com a saúde do planeta e a sustentabilidade das ações humanas têm persistido ao longo do tempo na consciência coletiva e individual das populações e estão presentes na agenda política de várias países e organizações mundiais desde a década de 80. Originalmente conotado com o "desenvolvimento económico sustentável", o termo sustentabilidade tem sido apropriado por várias áreas do saber, desde o ambiente ou a saúde, à arquitetura, à sociedade ou à cultura, sendo que atualmente representa um conceito multidimensional: um "rio semântico" (nas palavras de Kundera), por onde passa, ganha novos significados, que vai somando aos anteriores.

“O chapéu-coco era o leito de um rio, e Sabina via nele, de cada vez, um novo rio correndo, um rio semântico: o mesmo objeto suscitava de cada vez um outro significado, mas esse significado repercutia (como num eco, num cortejo de ecos) todos os significados anteriores”. (M. Kundera, 1984)

Na esfera da Alimentação e da Nutrição, o pensamento estratégico mundial está alinhado com os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos na Agenda 2030 da ONU, no combate à fome, à pobreza ou às desigualdades sociais. A título de exemplo, sublinhamos as preocupações definidas pela FAO no Quadro Estratégico 2022-2031 para uma “melhor produção, melhor nutrição, melhor meio ambiente e uma vida melhor”, ou os cinco principais desafios identificados pelo EIT Food para o sistema alimentar europeu em 2022, dos quais destacamos a adoção de práticas agrícolas “regenerativas”, o consumo de “proteínas alternativas” ou o recurso a sistemas de rotulagem “ambiental” dos alimentos.

A par do reconhecimento crescente pela comunidade científica da existência de benefícios mútuos decorrentes das interações entre os sistemas alimentares (desde a produção de alimentos até ao consumo e gestão de desperdício), e a saúde, o ambiente, a economia, a sociedade e até a cultura, tem sido sublinhado o impacto das dietas saudáveis e sustentáveis no ambiente e na saúde das populações.

Sustainable Healthy Diets are dietary patterns that promote all dimensions of individuals’ health and wellbeing; have low environmental pressure and impact; are accessible, affordable, safe and equitable; and are culturally acceptable. (FAO/OMS, 2019)

Ao termo “healthy diet”, acrescem novas expressões como “sustainable diets”, “sustainable healthy diets” e mais recentemente “planet-based diets”. As dietas “nutricionalmente adequadas” ganham uma dimensão renovada à luz da sustentabilidade: promovem a saúde holística dos indivíduos, respeitam a biodiversidade e o ecossistema, são seguras e saudáveis e também culturalmente aceites, acessíveis e economicamente justas.

Sustentabilidade (também alimentar), mais do que "um rio semântico" que enforma o seu caudal por onde passa, faz-se ouvir em murmúrio coletivo que nos responsabiliza por cuidar (sustentare) de nós próprios e dos outros, dos contemporâneos e dos vindouros, e do planeta, atual e futuro.

Mas a questão não está em sofrer ou não de cárie dentária, de osteoporose, de anemia, de intolerância à glicose, de carcinoma ou de outro mal qualquer. Está em saber quando é que será impossível viver. É altura de perguntarmos: vamos deixar que envenenem o nosso meio ambiente?(Emílio Peres. Vamos deixar que envenenem o nosso meio ambiente?, 1978).

Sugestões de leitura

Healthy and sustainable dietary patterns in children and adolescents: a systematic review. 2021 (autoria de docentes da FCNAUP, FullText UPorto)

 

FAO/OMS. Sustainable healthy diets: Guiding principles. 2019 (Open access)

Contributos para uma estratégia de promoção da alimentação saudável e sustentável em Portugal. 2016 (autoria de docentes da FCNAUP, Open Access)

APN. Alimentar o futuro: uma reflexão sobre sustentabilidade alimentar. 2016 (Open access)

Sugestões para consulta de obras na Biblioteca